- nossa, que bom que você parou, eu já estava na estrada há umas duas horas nesse ponto, ninguém parava.
- é, né... para onde você está indo?
- São Paulo
- certo. Bom, vou até Sorocaba. Te deixo no trevo. Daí para chegar em São Paulo é fácil. ... Deve ser difícil conseguir carona, né. Eu mesmo não costumo dar. Só parei mesmo porque vi que você é músico. O que você toca?
- então, toco guitarra. É que vou tocar esse fim de semana e como o pessoal do bar não nos deu grana para viajar...
- pô, o pessoal não ajuda nem com a viagem?
- é, tocamos sem receber. Aliás, nós pagamos para tocar, né. viagem custa caro... enfim, como não nos pagaram, nós resolvemos pegar carona. Como tava difícil, nos separamos. O outro que estava comigo já conseguiu. Só faltava eu.
- porra, heim. Ter que pagar para tocar é foda, heim.
- é ... a gente tem que se sujeitar as vezes, né
- é, sei
- e além de músico, é o quê?
- faço faculdade. psicologia
- psicologia. só tem louco nesse curso, né? eu tive um sobrinho que fazia psicologia. acabou não terminando. ele se drogava muito, acho, ficou bobo depois. hoje ele tem 32 anos e é aposentado por invalidez. sempre vai num lugar lá em campinas.
- puxa!
- mas tem bastante mulher no curso, né?
- tem sim. Tem bastante.
- o foda é que viado também, né?
- tem bastante gay sim ...
- não gosto de viado. Nessa cidade acho que tem muito. Sempre quando passo aqui e vou almoçar no shopping, fico olhando bem quem está do meu lado. E pra ir no banheiro então: é só entrar pra mijar, já vem dois, um de cada lado ficar olhando seu pau enquanto mija.
- (putz, que cara idiota) hmm.sei..., e o que você faz da vida?
- trabalho com vendas. Percorro essas cidades toda semana. Trabalhar assim é meio solitário, sabe.
- hmm
(silencio por alguns minutos)
- sabe, quando eu era jovem, costumava pegar carona também . mas naquela época era diferente. Acho que era mais seguro. A repressão era maior, a polícia era melhor. O pessoal fica falando hoje de época militar ter sido ruim, mas pelo menos era seguro.
- (ai meu deus, onde é que eu me enfiei?)
- esses dias um guarda me parou. Ele tava com duas mulheres. Falou pra eu dar carona para elas. Dei, né. Ai uma já foi falando assim para a outra. ‘’ó, se tiver que dar, dá você dessa vez porque eu to cansada’’. Elas tinham acabado de pegar carona com um caminhoneiro que tinha cobrado a carona comendo uma delas. ‘’não, não quero comer você não, vocês não me agradam’’ falei. Elas pensando que eu ia comer elas...ai ai ai. Você tem namorada?
- tenho sim.
- hmm, e ela deixa você pegar carona assim?
- não gosta muito não.
- é perigoso, né. Tem uns caras que abusam mesmo. E você? Tem medo de pegar carona? Porque assim como quem dá carona, quem pega deve ter algum medo também, né? Qual é o seu medo?
- ...(começo a olhar ressabiado para o cara) não tenho muito medo não, mas fico com pé atrás de quererem me roubar.
- e de ser estuprado? Não tem medo não? E de ser morto?
- por que a pergunta?
- calma, calma. To te assustando, né? Só estou perguntando. Pra fluir uma conversa. É bom conhecem quem está andando com você.
- não. Não tenho medo não. (olhando fixo para a cara, ressabiado)
- sei. Mesmo se a pessoa tiver uma arma?
- (puta que pariu. To ferrado) mesmo assim!
- gosto de gente assim como você, com fibra, sabe. Sangue no olho. Por que já ouvi muita gente dizendo que deixaria ser estuprado para não morrer. É bem legal esse ideal de lutar por você mesmo. Gosto disso.
(silencio de muitos minutos)
- me fala uma coisa. Que tipo de som é o de vocês?
- é rock. ...um tipo de rock.
- hmm um ex. namorado da minha filha era rockeiro também. Tinha uma banda lá em Sorocaba. Acabou morrendo, coitado. Num acidente de carro. Ele até parecia com você: Tinha uma barba assim, um cabelinho desse jeito. Um sorrizinho também.
- ah. Que triste, né
- não sei se foi triste não. Eu não gostava muito dele para dizer a verdade. Mas que isso só fique aqui. Eu nunca contei isso para ninguém.
- e por que está contando para mim agora?
- porque você faz psicologia. (e ri) brincadeira. Porque não nos conhecemos e eu sei que você não contará a ninguém ... olha, eu acho que vou precisar parar ali naquele posto para dar uma mijada, viu.
- tá bem.
- meu pau tá cheio e mijo, preciso dar uma esvaziada nele, sabe? Colocar ele pra fora, mandar ver. Mandar ver tudo mesmo. E ficar aliviado depois.
- sei...
(paramos no posto)
- bom, vou lá dar uma mijadinha. (abre a porta, percebo que ele pega uma arma que estava de baixo do banco e coloca no bolso, e deixa aparecendo um pouco da coronha), vou fechar o carro. Você não vem?
- não não. Pode ir.
- olha, acho melhor você ir ...porque depois você vai ficar com vontade e ainda falta muito até Sorocaba
- mas não estou com vontade mesmo
- tá bem então
- (putz. Vou pegar minhas coisas e cair fora daqui. Eu que não vou ficar com esse cara. Ainda bem que nesse posto até que tem um pessoal, preciso pegar minha coisas)
(alguns minutos)
- pronto, vamos?
- é. Então, enquanto você foi no banheiro, conversei com um caminhoneiro, ele tá indo direto para São Paulo e vai parar perto de onde eu preciso. Vou com ele daqui.
- você tem certeza? Comigo, até Sorocaba você está garantido e seguro.
- eu sei, mas é que com ele já vou direto, obrigado pela carona. vou pegar minhas coisas no carro.
- bom, se é o que você quer. Tudo bem.
- é...
- boa sorte ai na estrada e bom show. cuidado, tem muito maluco que a gente nunca sabe o que pode fazer, né.
- pode deixar
(peguei minhas coisas e ele foi embora, voltei para a pista, 30 minutos pedindo carona. 6 horas depois estava onde precisava, aliviado.)
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